Foto de Autonomismo

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O autonomismo nasceu de dentro do marxismo?

O autonomismo é um posicionamento fundado pelo filósofo grego Cornélius Castoriadis (1922-1997), que defende a tomada do controle de todas as instituições da sociedade diretamente pela população.

Castoriadis iniciou sua carreira de pensador político no marxismo, como membro de um grupo trotskista ultraradical chamado Socialismo ou Barbárie. O grupo se celebrizou pela publicação de uma revista de mesmo nome (mais tarde publicada na forma de um livro), onde eram foram expostas as primeiras críticas realmente radicais, extensas e bem fundamentadas contra ditadura stalinista a serem feitas pelos próprios marxistas.

O lema do grupo, expresso de diferentes maneiras em diferentes ocasiões, era a seguinte ideia: A sociedade mais justa não é aquela que decidiu de uma vez questão da justiça, e sim aquela em que a questão da justiça está sempre em discussão por parte de toda a sociedade.

Visando a realização dessa justiça social, o Socialismo ou barbárie defendia um modelo comunista de organização interna democrática, apoiado sobretudo nos conselhos operários, e combinando isso à sua crítica do autoritarismo estatal, foi se aproximando cada vez mais de ideias anarquistas, defendendo a ruptura de todas as hierarquias institucionalizadas e a autogestão em todos os níveis. Em pouco tempo o grupo foi expulso dos círculos trotskistas e passou a ser rechaçado pela maioria dos partidos comunistas europeus, pelo excesso de radicalismo e pela intransigência no combate a todas as estruturas institucionalizadas de poder.

O autonomismo é o posicionamento que foi fundado por Castoriadis após a dissolução do grupo Socialismo ou barbárie — quando constatou que o termo "socialismo" não condizia mais com aquilo que, na sua avaliação, deveria ser a verdadeira herança política da história das lutas trabalhadoras. Esse posicionamento começa a se esclarecer mais nitidamente no livro Instituição imaginária da sociedade.


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Existem outros pensadores conhecidos que começaram
junto com Castoriadis?

Faziam parte do mesmo grupo Socialismo ou barbárie, como seus membros mais ativos, além do próprio Castoriadis — que parece ter sido na época o mais produtivo deles intelectualmente, e talvez o mais influente entre os colegas — os filósofos Jean-François Lyotard, Claude Lefort e Edgar Morin.

Com o fim do grupo, cada um deles se tornou mundialmente famoso mais tarde com a sua própria filosofia independente. Lyotard se encaminhou para a filosofia da arte, e criou a noção de "pós-modernidade". Lefort continuou em filosofia política, discutindo o totalitarismo e as formas de combatê-lo. Morin se voltou mais para a questão do conhecimento, e passou a defender o que se costuma chamar de "filosofia da complexidade".

Fizeram parte do grupo também, acerta altura, como membros na época menos influentes e menos conhecidos, Georges Bataille e Guy Debord — ambos tornando-se famosos mais tarde também, cada um com sua própria teoria, Bataille em literatura, antropologia e psicologia; Debord em filosofia política e filosofia da arte.

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O autonomismo de Castoriadis tem alguma ligação com o freudomarxismo que ganhou força durante o Movimento de 68?

A filosofia castoriadiana não coincide com o freudomarxismo de Herbert Marcuse nem com o de Wilhelm Reich, que costumam ser as principais referências no sentido de uma combinação entre as teorias de Freud e Marx. Mas é também, indubitavelmente, um freudomarxismo.

Castoriadis, além de filósofo e militante marxista, era psicanalista freudiano, e aos 46 anos de idade vivenciou o Movimento de 68 na Europa, acompanhando com interesse a nova postura política revolucionária que surgia em gerações mais jovens, entre os estudantes. Entre os lemas da jovem geração rebelde de 68, que costumavam ser pichados repetidamente em diversos muros da cidade de Paris na época, estavam dois que parecem ter despertado particularmente a atenção desse psicanalista e filósofos marxista:A imaginação no poder e Sejamos realistas, exijamos o impossível. De fato, esses dois lemas parecem ter marcado a orientação geral de Castoriadis desde então.

Após 68 ele participou, com suas referências marxistas e freudianas, de um grupo de intelectuais que procuravam compreender e interpretar esse movimento da juventude, o que resultou na publicação do livro A brecha, com ensaios de todos eles sobre o assunto.

Inspirado pelas ideias rebeldes de 68, e analisando de um ponto de vista freudiano a questão da alienação em Marx, mas ao mesmo tempo procurando conciliar o psicologismo com o realismo político caracteristicamente marxista, Castoriadis chegou à noção de que essa questão — da alienação — está intimamente ligada ao modo como a sociedade lida com essa criação do imaginário social que são as instituições. Foi associando isto ao estudo da história das lutas dos trabalhadores por seus direitos (desde a antiguidade), que Castoriadis passou a adotar, como modelo para a orientação das transformações sociais desejadas no sentido do autonomismo, os princípios fundamentais da democacia direta de Atenas.

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O autonomismo de Castoriadis é uma nova versão da tradição anarquista?

O termo autonomia vem das palavras gregas autós (por si mesmo) e nomos (lei, norma). A autonomia é a condição de quem dá a si mesmo suas próprias leis. O autonomismo de Castoriadis propõe que essa condição seja conquistada não apenas para a sociedade como um todo, mas simultaneamente também para cada grupo social no interior dela e para cada indivíduo em relação a seu grupo e à sociedade como um todo. Autonomia e autogestão (auto gerenciamento) em todos os níveis: são propostas que tendem a agradar qualquer anarquista.

Mas embora se aproximem muito, autonomismo e anarquismo não se confundem. A principal diferença está no fato de que o autonomismo não pode ser definido como uma prática incessante ou uma incessante negação de toda e qualquer hierarquia ou autoridade institucionalizada, como o anarquismo.

Enquanto herdeiro da ideia trotskista de revolução permanente, o autonomismo também acaba propondo essa atuação permanente (coincidente com a dos anarquistas) de constante busca da autonomia em todos os níveis. Contudo trabalha também com a ideia de que essa atuação permanente deve visar, ao mesmo tempo, a manutenção das conquistas já obtidas nesse sentido — e para o autonomismo há sim, claras conquistas a obter, há resultados específicos esperados no sentido de uma específica proposta para a organização da sociedade.

Assim, enquanto no anarquismo as propostas para organização da sociedade podem ser as mais variadas e estão em aberto — e já por princípio nunca serão satisfatórias —, no autonomismo existe um onde chegar. Cabem também, para o autonomismo, as mais variadas propostas para a conquista dessa situação desejada na organização social, mas uma situação desejada na qual se pretende chegar e que pode ser sim considerada razoavelmente satisfatória. E uma vez atingida, essa situação deve ser perseverantemente preservada e cultivada, o que exige uma luta constante.

Uma maneira mais clara de demarcar a diferença entre essas duas correntes de pensamento talvez seja a seguinte: como o autonomismo tem uma situação-objetivo específica em vista para ser alcançada e mantida, não é de todo inadmissível para um autonomista que ela seja alcançada, por exemplo, pela via partidária. O objetivo está acima dos meios, e importa apenas que se cuide para que esses meios não corrompam o objetivo. No Brasil, há inclusive rupos autonomistas articulados informalmente em alguns partidos, desde que Castoriadis esteve no país enquanto ainda era vivo para fazer um ciclo de palestras promovido pelo governo de Olívio Dutra pelo PT no Rio Grande do Sul.

Um anarquista autêntico jamais aceitaria a via político-partidária para transformações. O autor deste site e das presentes linhas, que se posiciona como uma espécie de anarco-autonomista, também não aceita a via político-partidária, nem deposita tanta confiança na firmeza de bons resultados com as instituições sob controle da população, embora considere esse controle o melhor que se tem a fazer em relação a elas. Para mais detalhes quanto a isto, sugiro que o leitor dê uma olhada em Posição pessoal no menu do caneçalho desta página.

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Qual é o projeto básico dos autonomistas para a sociedade?

A situação desejada pelos autonomistas, aquela que caracteriza o seu projeto básico, é a de um controle direto de todas as instituições fundamentais da sociedade pela própria população, e de modo que ela se torne independente de qualquer intermediação de governantes ou patrões no gerenciamento dessas instituições. Por outro lado, ao contrário do que ocorre entre certos militantes anarquistas mais radicais, para o autonomismo não é inadmissível a presença de lideranças que orientem com sua influência esse movimento em busca do controle social e popular direto das instituições.

Esse projeto político e social é acompanhado por um projeto psicológico, em certa medida coletivamente terapêutico para a sociedade.

As instituições, sendo fundamentalmente uma formação do imaginário social e ao mesmo tempo uma indiscutível realidade social, são precisamente o ponto em que a psique social se encontra com a realidade externa política e econômica da maneira mais contundente, e no qual se torna mais frutífera a associação entre as teorias de Freud e Marx. Segundo Castoriadis, a alienação a ser combatida consiste, precisamente, na situação em que esses elementos do imaginário social — as instituições, aliás carregadas de fantasias em sua fundação e manutenção, recalcando essas fantasias pela falsa ideia de serem puramente funcionais — escapam ao controle consciente da sociedade e desenvolvem mecanismos de funcionamento autônomos, independentes da vontade popular consciente e que não a representam.

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O autonomismo está ligado à ideia de democracia direta dos antigos gregos?

A base do autonomismo é essa intuição fundamental, ao mesmo tempo marxista e freudiana, de que é necessário lutar pelo controle popular das instituições (políticas, administrativas, econômicas etc.) que forem as mais fundamentais na organização da sociedade. Acompanha essa intuição prática a de que o controle popular das instituições é o ponto de encontro entre o projeto político de desalienação da sociedade e o projeto político de retomada do domínio consciente do imaginário social que, através do funcionamento autônomo das instituições, passou a controlar a sociedade mecanicamente, arrastando-a ao sabor do seu inconsciente.

A ideia, a rigor, é a de que a sociedade nunca deixou de fato de controlar a si mesma: mas passou a fazê-lo inconscientemente, alienada desse controle, e alienando-se justamente ao se colocar nas mãos de instituições que, uma vrez criadas, ela deixa atuarem sobre si segundo os próprios mecanismos colocados a funcionar nessas instituições, sem controle constante pela vontade popular consciente.

Mas para fundamentar tudo isso, além de Marx e Freud e da inspiração sessentaeoitista, Castoriadis mergulhou num profundo estudo da história das lutas dos trabalhadores por seus direitos, e acabou então por encontrar na democracia direta (ou pura) de Atenas um modelo institucional perfeitamente condizente com as aspirações históricas do proletariado em suas lutas.

Para isso seria preciso desconsiderar, é claro, os problemas culturais (extra-institucionais) que, em Atenas, não permitiam a participação extensiva a toda a população, nem a recusa da escravidão; e desconsiderar também os problemas políticos e econômicos específicos que conduziram Atenas, na antiguidade, a uma política externa nem sempre condizente com os seus próprios princípios democráticos. Independentemente de tudo isso, as instituições democráticas criadas pelos atenienses poderiam sim ser reeditadas de modo a exprimir perfeitamente as aspirações históricas dos trabalhadores em suas lutas por seus direitos, e estendê-las como orientação à sociedade como um todo.

O que Castoriadis observa é que o modelo institucional da democracia direta de Atenas, devidamente adaptado às condições e exigências dos novos tempos, poderia servir para a orientação da luta política rumo à tomada de controle consciente das instituições por parte da população. Portanto tambpem para a orientação do processo de desalienação da população, revertendo (e invertendo) os mecanismos pelos quais a sociedade vem se fazendo inconscientemente dependente das instituições e sem autonomia, e sem poder sobre os rumos ditados autônoma e mecanicamente por elas.

A desalienação da sociedade consiste, segundo essa perspectiva, em retirar à força a autonomia das instituições, colocando o poder sobre elas nas mãos da população — a fim de, com isto, restituir à população a sua autonomia enquanto agente histórica responsável pelo seu próprio destino.

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